A OBRIGATORIEDADE DE IMPOSIÇÃO DE PENA DENTRO DOS LIMITES, MÍNIMO E MÁXIMO, PREVISTOS EM ABSTRATO E O ARTIGO 206 DO CBJD
26 de agosto às 11:38
Por Manoel Francisco de Barros da Motta Peixoto Giordani¹
RESUMO
Este artigo propõe uma análise crítica e reflexiva sobre a aplicação e a dosimetria das penas previstas para cada infração disciplinar, com foco especial na infração descrita no artigo 206 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, que trata do atraso das agremiações no início ou reinício das partidas. A discussão abrange, ainda, os princípios da reserva legal, da segurança jurídica, os critérios para a fixação da pena e a questão da reincidência.
ABSTRACT
This article proposes a critical and reflective analysis of the application and sentencing guidelines for each disciplinary infraction, with special focus on the infraction described in Article 206 of the Brazilian Code of Sports Justice, which addresses delays by teams in starting or restarting matches. The discussion also encompasses the principles of legal reserve, legal certainty, the criteria for determining penalties, and the issue of recidivism.
1.INTRODUÇÃO
Este artigo busca explorar algumas reflexões sobre a aplicação e a dosimetria da pena que, a nosso ver, deve ser imposta, obrigatoriamente, observando-se os limites – mínimo e máximo – previstos em abstrato para cada infração disciplinar.
Para abordar o tema, iremos tratar especificamente dos casos de aplicação de multa a partir de uma condenação pela prática da infração disciplinar prevista no artigo 206 (2) do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (doravante, CBJD), que tem por objetivo sancionar aquela agremiação que atrasar o início ou reinício da partida.
O preceito secundário (pena prevista em abstrato) para referida infração é pecuniária, com aplicação de multa que poderá variar entre R$ 100,00 (cem reais) a R$ 1.000,00 (mil reais), por minuto de atraso.
Isso posto, a divergência que surge é acerca da efetividade desses valores, a depender do time e do campeonato sob análise, havendo aqueles que sustentam a defasagem da previsão, defendendo a possibilidade de a pena ser aplicada além do máximo previsto abstratamente no tipo.
Destarte, é imperioso que se faça uma análise mais profunda e minuciosa acerca da possibilidade ou não de uma pena ser aplicada aquém do mínimo ou além do máximo, por livre deliberação do auditor.
Para enfrentarmos a problemática que ora se propõe, indispensável analisarmos conceitos e princípios que norteiam a aplicação da pena, a segurança jurídica que se espera em uma seara sancionadora, para ao final apresentarmos nossa posição sobre a (im)possibilidade de aplicação de pena fora da moldura estabelecida para determinada infração disciplinar.
2.ARTIGO 206 DO CBJD
O artigo 206, “caput”, do CBJD prevê:
“Dar causa ao atraso do início da realização de partida, prova ou equivalente, ou deixar de apresentar a sua equipe em campo até a hora marcada para o início ou reinício da partida, prova ou equivalente.
PENA: multa de R$ 100,00 (cem reais) até R$ 1.000,00 (mil reais) por minuto.”
Nota-se que o tipo busca desestimular o atraso no início ou reinício da partida, tipificando essa questão como infração disciplinar e apenando aquela agremiação que der causa ao atraso no início ou reinício da partida, devido a todo impacto organizacional que esse atraso pode gerar no evento.
3.PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL OU LEGALIDADE
Trata-se de princípio constitucional, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, sendo, portanto, uma cláusula pétrea, desempenhando papel fundamental no ordenamento jurídico, atuando como vetor do sistema na criação de infrações e cominação de penas.
Embora intimamente ligado ao direito penal, previsto também no artigo 1º do Código Penal, certo é que sua definição pode fundamentar e direcionar o auditor no julgamento em âmbito de Justiça Desportiva, na medida em que compete a lei (interpretada lato sensu, considerando que o Diploma Desportivo possui natureza de ato normativo) a criação de infrações e a respectiva cominação de pena.
Desse modo, o princípio da reserva legal visto no âmbito da Justiça Desportiva possui fundamento na medida em que determina, de forma precisa, a conduta que deve ser considerada como infração disciplinar e a sanção correspondente, protegendo o denunciado de eventual arbítrio de poder de punir do julgador.
Nota-se, com isso, que esse princípio atua como expressa limitação normativa / legal ao auditor, que vai aplicar a norma prevista em abstrato ao caso concreto, e cuja atuação deve se basear, obrigatoriamente, ao que estabelecido no diploma legal aplicável, o CBJD.
4.SEGURANÇA JURÍDICA
Ao falarmos em segurança jurídica, devemos compreender que as leis e atos normativos devem ser aplicados de forma coerente e previsível, vedando-se surpresas desagradáveis que afrontem o senso de justiça e criem instabilidade no sistema.
Assim, para o tema proposto, a segurança jurídica serve para preservar a legítima pretensão do denunciado de que a sua conduta será punida nos termos previstos no diploma desportivo, nem a mais e nem a menos.
O denunciado (no caso do artigo 206 do CBJD, a agremiação), no momento do seu julgamento, deve ter a segurança de que a imposição de pena para a infração disciplinar cometida não se pode dar ao alvedrio do julgador, sob pena de ofensa direta ao princípio da legalidade, como visto acima, bem como da segurança jurídica, na medida em que o denunciado não pode restar condenado a uma pena que não encontra previsão na infração disciplinar imposta, nem que seja diversa daquele estabelecida no preceito secundário.
5.FIXAÇÃO DA PENA
Com relação a fixação da pena, importante entendermos a margem e o limite de atuação do auditor, que deverá se ater, no momento da fixação da pena, aos limites – mínimo e máximo – estabelecidos no preceito secundário da infração disciplinar, isto é, proferir sua decisão respeitando essa moldura entre o mínimo e o máximo.
O artigo 178 do CBJD prescreve que:
“O órgão judicante, na fixação das penalidades entre limites mínimos e máximos, levará em conta a gravidade da infração, a sua maior ou menor extensão, os meios empregados, os motivos determinantes, os antecedentes desportivos do infrator e as circunstâncias agravantes e atenuantes.” (grifo nosso)
Além dos aspectos principiológicos, como o princípio da legalidade e o da segurança jurídica, acima mencionados, a simples leitura do artigo 178 não deixa espaço para se fixar uma pena fora dos limites previstos para cada infração disciplinar.
Voltando para a análise do artigo 206 do CBJD, e enfrentando o argumento de que a pena prevista no dispositivo se encontra desatualizada, por ter sido inserida no CBJD ano de 2009, não pode prosperar. O julgamento em âmbito de Justiça Desportiva deve ser técnico e jurídico, fundamentado nas regras e princípios gerais que norteiam o ordenamento jurídico como um todo. Essa atuação técnica reforça a legitimidade da Justiça Desportiva, do direito desportivo e em última análise da própria competição.
Ora, sem adentrar no mérito de possível defasagem da pena de multa prevista, que, frise-se, é estipulada por minuto de atraso, certo é que o subjetivismo do julgador para ultrapassar o máximo previsto abstratamente não se coaduna com a exegese que pensamos decorrer de uma interpretação do sistema jurídico, tão pouco com a parte geral do CBJD.
6.AGREMIAÇÃO REINCIDENTE
Aqueles que entendem ser possível a imposição de pena acima do máximo legal nos casos do artigo 206 do CBJD argumentam, como visto acima, que a pena de R$ 1.000,00 (mil reais) por minuto de atraso seria insuficiente e, ainda, que a reincidência permitiria essa elevação acima do máximo previsto em abstrato.
Permissa vênia, mas esse entendimento não pode prosperar, na medida em que a reincidência é tida expressamente pelo Código Desportivo como circunstância que agrava a penalidade a ser imposta, nos termos do artigo 179, inciso VI.
Em se tratando de circunstância agravante, constatada a reincidência, é legítimo ao julgador, no momento da dosimetria, elevar a pena base, partindo do mínimo legal, até chegar ao máximo, mas não ir além disso.
Há que se notar que, se a reincidência ou outra agravante qualquer, prevista no artigo 179 (3) do CBJD, for tratada como uma causa de aumento de pena ou uma qualificadora, com previsão expressa de que a pena seria aumentada ou diversa aumentada, aí sim poderia resultar na aplicação da pena de forma mais gravosa, pois a própria lei traria essa possibilidade.
Para facilitar a compreensão, importante distinguirmos circunstância agravante, de causa de aumento, de qualificadora. A circunstância agravante é aquela prevista genericamente (tal qual a reincidência e as demais constantes do artigo 179 do CBJD) e que servem para modular a pena entre o mínimo e o máximo previsto em abstrato; causa de aumento são hipóteses previstas expressamente e que se verificada resultará num aumento da pena em uma fração específica, por exemplo, 1/3 (um terço) ou ½ (metade). Já no caso da qualificadora, a infração disciplinar passaria a ser prevista com um preceito secundário autônomo (uma pena) mais gravoso do que aquela prevista para a infração disciplinar na sua forma simples.
À guisa de exemplo, poderia o CBJD estabelecer que a prática de ato desleal ou hostil (artigo 250 (4) do CBJD), quando praticado em concurso de pessoas, teria a pena autônoma de suspensão duas a quatro partidas (e não de suspensão de uma a três); ou que o atraso, quando a agremiação for reincidente, teria um acréscimo de 2/3 (dois terços) na pena de multa imposta.
Com isso, podemos concluir que eventual reincidência da agremiação, tal qual prevista no CBJD, deve ser levada em consideração no momento da dosimetria da pena a ser imposta, permitindo sua utilização para justificar a imposição de pena acima do mínimo legal, mas tendo como teto o máximo estabelecido pelo tipo, nos termos do artigo 178, parte final (5) , do CBJD.
7.CONCLUSÃO
Com o trabalho que ora se apresenta, buscou-se oferecer parâmetros e fundamentos legais para análise da possibilidade ou não de aplicação da pena fora dos parâmetros previsto abstratamente para uma infração disciplinar, seja aquém do mínimo legal ou além do máximo.
Após apresentar considerações sobre o princípio da legalidade, seu amparo constitucional e legal, buscou-se demonstrar ser atécnica a decisão que, pautada em puro subjetivismo do julgador, aplique penalidade fora da moldura previstos em abstrato para determinado tipo infracional.
Nesse sentido, procurou-se demonstrar que o auditor não pode aplicar pena diversa daquela que esteja prevista no preceito secundário do tipo, seja no tocante a modalidade, seja na sua quantidade, sob pena de ferir a sistemática vigente no ordenamento jurídico, em especial em se tratando de seara sancionadora, na medida em que o denunciado não pode ser surpreendido com uma decisão que imponha pena não prevista, o que configuraria flagrante irregularidade / ilegalidade, permitindo a impetração de recurso para reforma da decisão.
Ademais, buscou-se rechaçar a justificativa de que eventual defasagem do quantum de multa prevista para sancionar o artigo 206 do CBJD, tida por alguns como insuficiente, seria apta para a aplicação de pena diversa, a critério do auditor-julgador.
Em se tratando de pena ultrapassada ou defasada, o caminho adequado é que seja alterado o texto legal e/ou o ato normativo, de modo a atender a contento a punição para aquela conduta, sendo inadmissível – e ilegal – a aplicação de pena abaixo do mínimo ou acima do máximo, sem que aja causa de diminuição ou de aumento para aquele preceito primário, ou ainda uma qualificadora, o que não se verifica no caso do artigo 206 do CBJD.
CITAÇÕES:
1.Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Professor concursado da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra” do Estado de São Paulo (ACADEPOL). Auditor do Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva de Futebol do Estado de São Paulo – TJD/SP.
2.Art. 206. Dar causa ao atraso do início da realização de partida, prova ou equivalente, ou deixar de apresentar a sua equipe em campo até a hora marcada para o início ou reinício da partida, prova ou equivalente. (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
PENA: multa de R$ 100,00 (cem reais) até R$ 1.000,00 (mil reais) por minuto. (NR).
3.Art. 179. São circunstâncias que agravam a penalidade a ser aplicada, quando não constituem ou qualificam a infração:
I - ter sido praticada com o concurso de outrem;
II - ter sido praticada com o uso de instrumento ou objeto lesivo;
III - ter o infrator, de qualquer modo, concorrido para a prática de infração mais grave;
IV - ter causado prejuízo patrimonial ou financeiro;
V - ser o infrator membro ou auxiliar da justiça desportiva, membro ou representante da entidade de prática desportiva; (NR).
VI - ser o infrator reincidente.
4.Art. 250. Praticar ato desleal ou hostil durante a partida, prova ou equivalente.
PENA: suspensão de uma a três partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de quinze a sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código.
5.Art. 178. O órgão judicante, na fixação das penalidades entre limites mínimos e máximos, levará em conta a gravidade da infração, a sua maior ou menor extensão, os meios empregados, os motivos determinantes, os antecedentes desportivos do infrator e as circunstâncias agravantes e atenuantes.