A FUNDAMENTAÇÃO E VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO DISCIPLINAR DESPORTIVO: PARÂMETROS, DESAFIOS E PRÁTICAS PARA A RACIONALIDADE DECISÓRIA
14 de outubro às 11:00
Por Rodrigo Sousa Rodrigues, Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva do Piauí
RESUMO
A dinâmica do processo disciplinar desportivo brasileiro, caracterizada pela velocidade dos ritos procedimentais e pelo grande impacto prático das decisões, exige uma abordagem rigorosa da matéria probatória. Advocacia, auditoria e procuradoria enfrentam diuturnamente o desafio de construir decisões legitimamente fundamentadas e tecnicamente sólidas, que resistam ao controle jurisdicional e social. Neste contexto, valoração e fundamentação da prova assumem papel central na busca por decisões justas e eficazes.
Palavras-chave: CBJD; Justiça Desportiva; STJD; Processo Disciplinar.
ABSTRACT
The dynamics of the Brazilian sports disciplinary process, characterized by the speed of procedural steps and the high practical impact of decisions, require a rigorous approach to evidentiary matters. Legal counsel, auditors, and prosecutors face the daily challenge of constructing legitimately grounded and technically sound decisions capable of withstanding judicial and social scrutiny. In this context, the assessment and reasoning of evidence take on a central role in the pursuit of fair and effective rulings.
Keywords: CBJD; Sports Justice; STJD; Disciplinary Proceedings.
1. O PAPEL DA PROVA NO PROCESSO DISCIPLINAR DESPORTIVO
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) admite todos os meios de prova moralmente legítimos (CBJD, art. 56 e ss.), o que é essencialmente pragmático para responder à natureza multifacetada das infrações esportivas. No entanto, diversamente do processo penal ou cível, a Justiça Desportiva está cotidianamente exposta a provas obtidas de múltiplas fontes: relatórios oficiais de árbitros e delegados, imagens provenientes da televisão ou redes sociais, laudos médicos, elementos fornecidos por terceiros (clubes, torcidas, imprensa) e, crescentemente, gravações de VAR e correspondências digitais internas das entidades. O ponto central não está apenas na admissibilidade, mas principalmente na valoração técnica desses elementos, especialmente quando há contradições relevantes.
O cotidiano evidencia situações como a utilização de vídeos submetidos por advogados de defesa, demonstrando atitudes não percebidas ou mal relatadas pela equipe de arbitragem; ou então a apresentação de laudo médico detalhado como meio de demonstrar a ausência de lesões em lances de contato físico, superando a narrativa simples de súmulas. Por vezes, o auditor se defronta com provas produzidas fora do ambiente oficial da partida – por exemplo, publicações em redes sociais ou gravações amadoras levantando suspeita sobre direcionamento – e decide, sopesando o contexto, sua autenticidade e seu efetivo valor probatório. Em todos os casos, o princípio da busca da verdade material impõe a necessidade de convencimento racional e fundamentação expressa acerca das razões que levaram à formação do juízo condenatório ou absolutório.
2. CRITÉRIOS PARA VALORAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO
O livre convencimento motivado se apresenta como uma diretriz segura, mas não ilimitada. No âmbito da Justiça Desportiva, sua aplicação exige, por parte do julgador, o exame detalhado e expresso das razões pelas quais se valorizou este ou aquele elemento de prova. Vale lembrar que a presunção de veracidade atribuída às súmulas e relatórios oficiais (art. 58, CBJD) é relativa. Exemplo recorrente ocorre quando as imagens de transmissão televisiva permitem visualizar gestos, xingamentos ou agressões ignorados ou pouco detalhados pelo árbitro, permitindo ao colegiado não só afastar a versão sumulada como esclarecer pontos relevantes para a dosimetria da pena.
Por outro lado, a simples existência de prova audiovisual não torna irrelevante o contraditório: o árbitro pode ser chamado a explicar lacunas, e a defesa tem o direito de questionar a integridade ou o contexto das imagens apresentadas. Igualmente, laudos médicos, quando divergentes, exigem análise técnica cuidadosa, cabendo à defesa ou acusação requerer diligências, ouvir peritos ou solicitar novas perícias, caso imprescindível para elucidação do fato.
A fundamentação carece de individualização: o quórum julgador deve indicar, de modo preciso, como as provas produzidas convergiram (ou não) para a formação da convicção, evitando votos genéricos ou modelos padronizados que ensejam graves nulidades e fragilizam a legitimidade decisória. Nessa linha, a revisão plenária ocorre somente diante de flagrante conflito de provas ou ausência de motivação idônea que justifique a decisão recorrida.
3. PRÁTICAS COTIDIANAS DE PRODUÇÃO, IMPUGNAÇÃO E AVALIAÇÃO PROBATÓRIA
Procuradores, advogados e auditores, no dia a dia dos tribunais, lidam com uma sequência de situações que transcendem a mera aplicação fria dos dispositivos legais. O julgamento de uma suposta ofensa verbal entre atletas, por exemplo, frequentemente envolve a produção de vídeos captados por instrumentos não oficiais, exigindo do julgador a análise não apenas técnica da autenticidade do arquivo, mas o exame do contexto do jogo, postura dos denunciados durante e após o fato e, até mesmo, a busca por depoimentos ou manifestações das agremiações envolvidas, que possam corroborar ou desmentir a acusação.
Outro ponto recorrente é o emprego de provas emprestadas trazidas de inquéritos civis, sindicâncias internas ou procedimentos de ligas e federações. Nesses casos, o julgador deve atentar para a regularidade da obtenção, a inexistência de vícios na origem e para o necessário contraditório, permitindo às partes se manifestarem sobre seu conteúdo. Não são raros, também, os episódios em que súmulas apresentam graves omissões: árbitros relatando "confusão generalizada" sem identificação precisa dos envolvidos. O correto, tecnicamente, é não presumir responsabilidade coletiva, mas oportunizar às defesas a produção de provas individualizadas, além de exigir da Procuradoria a demonstração do nexo entre o agente e o fato punível, sob pena de se imputar a pena meramente por exclusão ou conveniência, prática vedada.
Ainda, a estrutura dos tribunais frequentemente desafia o controle da cadeia de custódia, especialmente na avaliação de vídeos editados ou fragmentados. A parte interessada deve apontar a ausência de integridade e requerer, conforme a situação, perícia ou diligência que possa esclarecer possíveis adulterações. Por fim, é saudável lembrar que provas de documentos digitais (e-mails, prints de conversas, registros eletrônicos) passaram a integrar o acervo comum das denúncias, e sua valoração exigirá não só capacidade analítica, como discernimento prático acerca de sua origem, contexto e efetiva aderência ao fato objeto da acusação.
4. FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES E REFLEXOS JURÍDICOS
O dever de fundamentar é corolário dos artigos 93, IX da Constituição Federal e 38 e 39 do CBJD, sendo requisito de validade e principal garantia do julgamento justo. Decisões desportivas devem refletir, mesmo que sinteticamente devido à celeridade própria do sistema, as razões concretas que conduziram ao convencimento, indicando quais provas foram valoradas, por que motivos determinados elementos foram rejeitados e como o conjunto levou à conclusão alcançada. O descumprimento desse dever torna as decisões vulneráveis a recursos e pedidos de revisão, com riscos evidentes de nulidade. Exemplo clássico é o voto “por economia processual, acompanho o relator”, prática que pode ensejar a anulação de julgamentos inteiros e o retorno à instrução, diante da ausência de motivação autônoma por parte de todos os julgadores do quórum.
Procuradores e advogados, nesse contexto, têm papel fundamental: ao requerer diligências, apontar contradições probatórias e provocar sempre a explicitação da motivação, constroem ambiente decisório mais seguro, previsível e justo. Em síntese, a credibilidade da Justiça Desportiva é construída cotidianamente na minúcia da fundamentação dos acórdãos e na habilidade argumentativa daqueles que nela atuam.
5. CONCLUSÃO
A excelência decisória da Justiça Desportiva não reside apenas na celeridade ou no cumprimento formal do rito, mas principalmente na integridade da fundamentação e no domínio técnico da valoração probatória. A sistematização dessas práticas, aliada ao compromisso com clareza e individualização decisória, qualifica o trabalho de advogados e julgadores, promove segurança jurídica e confere maior legitimidade às decisões perante a sociedade esportiva e o meio jurídico.
6. REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). Resolução CNE n° 29/2009. Brasília: Ministério do Esporte, 2009. Disponível em: https://www.gov.br/esporte/pt-br/composicao/orgao-colegiado-1/conselho-nacional-do-esporte/codigo_brasileiro_justica_desportiva.pdf. Acesso em: 03 set. 2025.