
É PRECISO EXPULSAR O PRECONCEITO DOS GRAMADOS
04 de novembro às 11:00
Por Delmiro Dantas Campos Neto, vice-presidente da Segunda Comissão Disciplinar do STJD do Futebol
A recente notícia sobre o ato de racismo sofrido por um menino de apenas doze anos durante uma partida de futebol em São Paulo é um golpe no coração do país que se reconhece como a terra do futebol. Um episódio horrendo, cruel e inaceitável, que fere a todos e lança dúvidas sobre a formação emocional e cidadã dessas crianças que sonham em viver do esporte. O campo, que deveria ser espaço de convivência e aprendizado, torna-se cenário de dor e de frustração, e o impacto desse tipo de violência, quando dirigido a um atleta infantil, é devastador.
Os episódios de discriminação racial, homofóbica e de ódio têm se multiplicado nos gramados, atingindo desde crianças em categorias de base até atletas consagrados do futebol mundial. Nem mesmo os mais bem pagos e admirados jogadores escapam de tais práticas, como se viu com o atacante brasileiro Vini Júnior, do Real Madrid e da Seleção Brasileira, vítima constante de ataques racistas na Europa. Quando, porém, o alvo é uma criança de doze anos, em um torneio de base, o cenário se torna ainda mais assustador. A violência simbólica se soma à vulnerabilidade psicológica e pode gerar traumas permanentes, desestímulo e o abandono precoce do esporte, comprometendo o processo educativo que o futebol, em essência, deveria oferecer.
Diante disso, a atuação da Justiça Desportiva brasileira ganha contornos de verdadeira política pública de educação e combate à intolerância. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) tem desempenhado papel exemplar ao julgar com celeridade e rigor casos de natureza discriminatória, transformando o aparato punitivo em um instrumento pedagógico de conscientização coletiva.
O artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) estabelece que é passível de punição quem “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de etnia, raça, sexo, orientação sexual, cor, idade, condição de pessoa idosa ou com deficiência”. Trata-se de um dos dispositivos mais sensíveis do CBJD, destinado a resguardar a dignidade humana dentro do ambiente esportivo.
O Enunciado 25 da I Jornada de Direito Desportivo do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) reforça a importância do aspecto educativo das sanções:
“Nas hipóteses previstas no art. 243-G, § 2º, do CBJD, em que a entidade de prática desportiva é demandada em decorrência da prática de atos preconceituosos por sua torcida, a identificação dos torcedores envolvidos na conduta e a demonstração de que o clube possui programas e/ou campanhas educativas voltadas à conscientização contra atos discriminatórios deverão ser consideradas para fins de aplicação da sanção de multa.”
Essa diretriz revela o esforço institucional em equilibrar punição e prevenção. Não basta punir o clube; é preciso avaliar sua atuação educativa e exigir dele a adoção de medidas concretas de conscientização. A Justiça Desportiva, nesse ponto, tem ido além do simples julgamento dos fatos: tem induzido os clubes a internalizarem práticas de educação e combate ao preconceito em suas estruturas formativas.
Um marco relevante nesse processo foi a assinatura, em 16 de setembro de 2025, do Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, firmado entre o STJD e a OAB/DF. O documento estabelece diretrizes para prevenir, investigar e sancionar práticas discriminatórias no esporte, inaugurando uma nova etapa de responsabilidade institucional. Em âmbito nacional, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também aprovou seu próprio Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, e a OAB Nacional tem difundido sua aplicação por meio de cursos e capacitações voltadas à advocacia e ao sistema de Justiça. Essas ações integram um movimento consistente de institucionalização da luta contra o racismo, sinalizando um compromisso ético compartilhado entre as instâncias judiciais e desportivas do país.
A efetividade dessas medidas, porém, depende da atuação imediata das autoridades e da sociedade civil. A identificação dos responsáveis e a lavratura contemporânea dos boletins de ocorrência são instrumentos indispensáveis para que o Poder Judiciário também possa agir com firmeza, sem prejuízo das vítimas buscarem reparação nas esferas cível e criminal. Todas as reações são necessárias — do tribunal desportivo ao cidadão que testemunha e denuncia — para construir um ambiente esportivo seguro, justo e inclusivo.
É nesse contexto que se impõe o fortalecimento permanente do combate e da prevenção. A luta contra o preconceito exige respostas articuladas, eficazes e contínuas. Não se trata de esperar o próximo passo, mas de sustentar o movimento, de ampliar a vigilância e de promover educação de forma constante. Reagir é indispensável, mas prevenir é essencial. O futebol brasileiro, em todas as suas instâncias, precisa reafirmar diariamente que racismo, homofobia e qualquer forma de discriminação não pertencem aos gramados — e que expulsar o preconceito é proteger a essência do próprio jogo.
