
OS REQUISITOS FORMAIS DA DENÚNCIA NO PROCESSO DISCIPLINAR DESPORTIVO: GARANTIAS, LIMITES E FUNÇÃO INSTRUMENTAL
23 de setembro às 10:12
Por Rafael Bozzano, Auditor Vice-Presidente da 3ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol
1. RESUMO
O presente artigo tem como objetivo fomentar o debate acerca dos requisitos impostos pelo legislador para que a denúncia seja recebida e devidamente processada, visando à apuração da responsabilidade desportiva do agente.
Tal provocação decorre, em grande medida, do brocado jurídico ao qual a maioria dos operadores do direito é exposta nos primeiros semestres da faculdade: dá-me os fatos e te darei o direito.
Ao se tomar conhecimento dos fatos e do direito no processo – e aqui será utilizado o processo penal, já que é o que mais se assemelha à dinâmica do processo disciplinar desportivo –, o julgador formará a sua convicção para aplicação ou não da pena, observando a correlação entre a denúncia e a sentença.
No processo disciplinar desportivo, como se observará, o legislador buscou oferecer uma garantia ainda maior aos seus jurisdicionados no momento do oferecimento da denúncia. É justamente sobre os requisitos formais que este artigo se debruçará.
Palavras-chave: CBJD; Justiça Desportiva; STJD; Denúncia.
ABSTRACT
The purpose of this article is to encourage the debate about the requirements imposed by the legislator for a charge to be accepted and properly processed, aiming at determining the agent's sports responsibility.
This discussion largely stems from the legal maxim that most legal professionals are exposed to in the early semesters of law school: "Give me the facts, and I will give you the law."
When the facts and law in a process are known – and here, the criminal process will be used, as it most closely resembles the dynamics of sports disciplinary procedures – the judge will form their conviction for the application or non-application of a penalty, observing the correlation between the charge and the judgment.
In sports disciplinary procedures, as will be observed, the legislator sought to provide an even greater guarantee to its subjects when the charge is presented. This article will focus specifically on the formal requirements.
Keywords: CBJD; Sports Justice; STJD; Complaint.
2. DA FUNÇÃO INSTRUMENTAL DA DENÚNCIA
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), reformado pela Resolução do Conselho Nacional do Esporte n.º 29, de 10 de outubro de 2009, decorre do texto previsto no art. 217 da Constituição Federal, que estabeleceu como sendo da Justiça Desportiva a competência originária para dirimir questões relativas à disciplina e às competições desportivas.
Quanto à sua organização, o CBJD se aplica a todas as modalidades do desporto de prática formal no território nacional, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e aos Tribunais de Justiça Desportiva (TJD) apreciarem as matérias relativas a competições nacionais e interestaduais, respectivamente.
Na sistemática do processo disciplinar desportivo, é com o oferecimento da denúncia que a parte denunciada toma conhecimento dos fatos tidos como antidesportivos e das penas correspondentes, caso seja acolhida a denúncia. Essa decisão ocorre na audiência de instrução e julgamento, após assegurada a ampla defesa e o contraditório do denunciado.
Dentre os princípios que norteiam o processo disciplinar desportivo, o CBJD determina que, para sua interpretação e aplicação, deverão ser observados os princípios da ampla defesa (art. 2º, I), do contraditório (art. 2º, III), da legalidade (art. 2º, VII), do devido processo legal (art. 2º, XV) e da tipicidade desportiva (art. 2º, XVI).
Em consonância com esses princípios, o art. 79 do CBJD estabelece, de forma obrigatória e cumulativa, que a denúncia deverá conter: (i) descrição detalhada dos fatos; (ii) qualificação do infrator; e (iii) dispositivo supostamente infringido.
Diferentemente do Código de Processo Penal, que em seu art. 41 determina que a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos que permitam identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas, no CBJD a indicação do dispositivo supostamente infringido é obrigatória.
Assim, não se trata sequer de hipótese de aplicação subsidiária do processo penal, já que o art. 283 do CBJD é explícito ao permitir apenas a adoção de princípios gerais de direito quando houver casos omissos ou lacunas. Nesse ponto, não há lacuna, pois o legislador impôs à procuradoria o dever de indicar, na denúncia, a descrição do artigo supostamente infringido.
Quanto à descrição detalhada dos fatos e à qualificação do infrator, não é permitido qualquer tipo de emenda. Já quanto ao dispositivo supostamente infringido, o parágrafo único do art. 79 do CBJD autoriza que o procurador presente na sessão de julgamento o corrija quando aquele originalmente descrito for inaplicável ao fato, podendo a parte interessada requerer o adiamento do julgamento para a sessão subsequente.
O legislador, ao redigir os requisitos da denúncia, foi taxativo ao determinar que, quando o dispositivo constante na denúncia for inaplicável aos fatos, o procurador presente na sessão deverá corrigi-lo, sob pena de, não o fazendo, tornar a denúncia inválida ou inadequada.
Tal imposição aplica-se quando o dispositivo descrito for completamente inaplicável ao fato, como, por exemplo, a denúncia ser tipificada no art. 254-A do CBJD (agressão física), enquanto o fato configurado se revelar como uma invasão de campo (art. 258-B do CBJD).
Por outro lado, quando a tipificação do ato considerado antidesportivo depender da interpretação do julgador, estando em uma zona cinzenta – como em um ato hostil (art. 250 do CBJD) ou em uma jogada violenta (art. 254 do CBJD) –, a correção não é obrigatória, pois o artigo supostamente infringido não se mostra inaplicável ao fato em si.
Essa particularidade do sistema disciplinar desportivo, especialmente a exigência de que a denúncia já contenha o dispositivo supostamente infringido, visa garantir ao denunciado o pleno exercício da ampla defesa e do contraditório.
Outro aspecto relevante é a constatação de que, no processo disciplinar desportivo, a concentração dos atos processuais em uma única audiência exige maior clareza e objetividade na formulação da denúncia.
Essa imposição mostra-se ainda mais necessária diante da possibilidade de a defesa ser apresentada pelo próprio denunciado, desde que maior e capaz (art. 29, CBJD).
Dessa forma, observa-se que a opção legislativa ao estruturar a denúncia com tais requisitos não deve ser interpretada como excesso de rigor técnico, mas como verdadeira garantia processual, adequando a atividade disciplinar desportiva aos ditames constitucionais e à lógica própria do devido processo legal.
3. CONCLUSÃO
A análise dos requisitos formais da denúncia previstos no CBJD demonstra que o legislador buscou conferir maior segurança jurídica ao jurisdicionado desportivo.
Diferentemente do processo penal, no qual há maior flexibilidade na tipificação inicial apresentada pelo Ministério Público, no processo disciplinar desportivo há imposição clara de que a peça acusatória contenha, obrigatoriamente, a descrição detalhada dos fatos, a qualificação do infrator e o dispositivo supostamente infringido.
Tal exigência não decorre de mero formalismo, mas revela a preocupação em assegurar que o denunciado conheça, de antemão, os limites da imputação que contra ele recai.
Portanto, caso a denúncia não cumpra os requisitos previstos no art. 79, I, II e III do CBJD, o desfecho mais adequado será a sua rejeição por inépcia, em razão da ausência de requisitos indispensáveis ao seu regular processamento.
Assim, no processo disciplinar desportivo, o brocado jurídico “dá-me os fatos e te darei o direito” não se sustenta, pois o CBJD impõe que, para o adequado processamento da denúncia, deve obrigatoriamente constar o dispositivo supostamente infringido (art. 79, III, CBJD).