Logo
BgTop
Artigos jurídicos

A JUSTIÇA DESPORTIVA CONSTITUCIONAL NO BRASIL

12 de agosto às 16:03

Por Paulo Sérgio Feuz¹

RESUMO

Este artigo analisa a natureza constitucional da Justiça Desportiva no Brasil, destacando sua posição como única exceção ao direito de ação previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988. Além disso, examina a inconstitucionalidade do parágrafo primeiro do artigo 189 (vetado) da Lei 14.397/2023, que transferia para as entidades de organização do esporte a regulamentação da Justiça Desportiva, contrariando o disposto no artigo 217, §1º da Carta Magna. O estudo baseia-se em doutrina especializada, legislação vigente e jurisprudência, reforçando a necessidade de manutenção da regulamentação estatal para garantir isonomia e respeito aos princípios constitucionais.

ABSTRACT

This article examines the constitutional nature of Sports Justice in Brazil, highlighting its position as the sole exception to the right of legal action provided for in Article 5, XXXV of the 1988 Federal Constitution. Additionally, it analyzes the unconstitutionality of the first paragraph of (vetoed) Article 189 of Law 14,397/2023, which sought to transfer the regulation of Sports Justice to sports organizing entities, contrary to the provisions of Article 217, §1º of the Constitution. The study is based on specialized legal literature, current legislation, and jurisprudence, reinforcing the need for state regulation to ensure equality and respect for constitutional principles.

1. INTRODUÇÃO

A Justiça Desportiva no Brasil é um microssistema judicante de natureza constitucional, previsto no artigo 217, §1º e §2º da Constituição Federal de 1988(2). Sua existência representa uma exceção ao direito de ação (artigo 5º, XXXV), exigindo o esgotamento das instâncias desportivas antes de qualquer intervenção do Poder Judiciário.

Este artigo aborda a estrutura, os princípios e a autonomia da Justiça Desportiva, bem como os riscos decorrentes da análise do Veto Presidencial pelo Congresso Nacional do parágrafo primeiro do artigo 189 da Lei Geral do Esporte que se validado permitirá regulamentação da Justiça Desportiva pelas entidades de Organização do Esporte, dando a estas superpoderes, o que não combina com o Estado Democrático de Direito previsto em no texto Constitucional Brasileiro.

2. A NATUREZA CONSTITUCIONAL DA JUSTIÇA DESPORTIVA

A Constituição Federal de 1988, reconhecida como marco fundamental do Estado Democrático de Direito, assegura o direito de acesso aos órgãos estatais (Direito de Petição) e ao Poder Judiciário (Direito de Ação), com uma única exceção expressa: a Justiça Desportiva Constitucional.

O Poder Judiciário, disciplinado nos arts. 92 a 126 da Carta Magna, consolida-se como o terceiro poder da República, atuando como “mediador de conflitos de interesses”, conforme destacou José Afonso da Silva(3) . Sua atuação é desencadeada pelo exercício do Direito de Ação, que pressupõe legitimidade, interesse processual e a provocação do Estado-Juiz para a solução de litígios.

A estrutura judiciária brasileira é complexa, organizando-se em órgãos federais e estaduais, com competências específicas, como as Justiças Eleitoral, Militar e Trabalhista.

Além disso, a Constituição prevê mecanismos alternativos de resolução de conflitos, como o Direito de Petição (art. 5º, XXXIV) e a Justiça Desportiva (art. 217, §§ 1º e 2º), esta última com caráter especializado e constitucionalmente reconhecido.

A Justiça Desportiva é um sistema autônomo e especializado, criado para julgar questões relacionadas à disciplina e às competições esportivas. Diferentemente do processo administrativo (Lei 9.784/99), que trata de atos da Administração Pública, a Justiça Desportiva atua no âmbito privado, regulando entidades desportivas sem fins lucrativos.

Como ressaltou o Ministro Carlos Ayres Britto (STF) (4) , a Justiça Desportiva possui status constitucional, sendo a única exceção ao livre acesso ao Judiciário (art. 5º, XXXV, CF/88). Isso significa que, antes de recorrer à Justiça comum, as partes devem esgotar as instâncias desportivas, sob pena de inadmissibilidade da ação judicial.
A Justiça Desportiva é um órgão judicante autônomo e independente, conforme estabelecido pela Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) e pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

Sua competência abrange infrações disciplinares e questões relacionadas a competições esportivas, sempre pautada pelos princípios do devido processo legal, ampla defesa e contraditório (artigo 2º do CBJD).

Como destacado por Álvaro Melo Filho (5) , a Justiça Desportiva exerce um "poder de sanção" essencial para a manutenção da ordem no esporte, sendo sua regulamentação matéria constitucional exclusiva do legislador ordinário.

A decisão do STF no MS 25.938 DF reforça que a Justiça Desportiva não se confunde com processos administrativos comuns, pois sua atuação é especializada e sujeita a prazos específicos.

3. A INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO PRIMEIRO DO ARTIGO 189 DA LEI GERAL DO ESPORTE - vetado pelo Presidente da República.

A Lei 14.597/23 (Lei Geral do Esporte) propôs, em seu artigo 189, §1º, que as entidades de organização do esporte regulamentem a Justiça Desportiva, trazendo superpoderes.

Tal disposição viola o artigo 217, §1º da CF/88, que determina expressamente que a Justiça Desportiva deve ser "regulada em lei". A transferência dessa competência para entidades privadas gera os seguintes problemas: a) Autotutela indevida: As entidades jurisdicionadas passariam a criar suas próprias regras de julgamento, ferindo a imparcialidade e a isonomia; b) fragilização dos princípios constitucionais: A ampla defesa e o contraditório poderiam ser mitigados por normas internas, sem controle estatal; c) desrespeito à hierarquia das normas: A Constituição exige lei formal para regulamentação da Justiça Desportiva, não admitindo delegação a atos privados.

Como alerta Paulo Sérgio Feuz (6) , a proposta cria um "superpoder" para as entidades esportivas, ameaçando direitos fundamentais de atletas, clubes e torcedores.

A lei no. 14.597/2023, que teve como escopo trazer uma nova regulamentação do esporte, sobre a premissa de avanços para a sociedade, e tentar um equilíbrio entre diversos interesses que atuam no esporte, foi contemplada com um importante veto Presidencial na proposta apresentada no Projeto de Lei que alterava circunstancialmente a Justiça Desportiva no Brasil, o que conduziria a Lei a inconstitucionalidade.

Nesse sentido a Lei Geral do Esporte tinha trazido uma nova roupagem parta a atual Justiça Desportiva o que ao nosso sentir em face a nossa experiência prática e acadêmica, na tentativa de modernizar ou melhorar o sistema, apresentou mudanças que além de ser prejudicial aos hipossuficientes, pois, desequilibrava a relação Jurisdesportiva trazendo superpoder as entidades de Organização do Esporte sob o manto da autonomia desportiva.

A Autonomia Desportiva prevista na Constituição Federal deve ser analisada sistematicamente, pois, no mesmo artigo 217, prevê o dever de fomento do Estado. A proposta retirava do Estado totalmente da regulamentação da Justiça Desportiva o que tornam as entidades de Organização do Esporte Nacionais, detentoras dos Poderes de Gestão, Controle e de legislar sobre o controle total da competição, podendo alterar as regras como bem entender, o que não confere com a vontade Constitucional e com o equilíbrio proposto no artigo 217 entre o Fomento do Esporte e a Autonomia Desportiva.

A atual regulamentação pela Lei Pelé e pelo CBJD garante equilíbrio entre autonomia desportiva e controle público.

A forma prevista na Lei no. 9.615/98, não é perfeita, porém equilibrada e traz a ideia de Montesquieu do fracionamento de Poderes, sendo este um dos pilares do Estado Democrático de Direito, logo acreditamos que os artigos vetados (artigos: 189 a 191) eram inconstitucionais.

O Estado, ao fomentar o esporte (artigo 217, I da CF), deve assegurar que os julgamentos desportivos sejam isentos e alinhados aos princípios democráticos.

A Justiça Desportiva, muito embora privada, mas com interesse público, não pode ser submetida a regras mutáveis por entidades privadas, sob pena de violar a segurança jurídica e a dignidade da pessoa humana.

4. CONCLUSÃO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 217 que regulamenta o Desporto no Brasil, traz em seus parágrafos 1º e 2º. a previsão da Justiça Desportiva, como única exceção ao Direito de Ação, previsto no artigo 5, XXXV do mesmo diploma Constitucional.

O Direito de Ação constitui na garantia ao cidadão Brasileiro de submeter ao Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça ao Direito.

Quando a Constituição traz a exceção da Justiça Desportiva ela restringi a apuração de casos relacionado diretamente a competição e disciplina dos envolvidos no esporte ao Poder Judiciário, devendo esta Justiça especializada se pautar nos princípios Constitucionais da Ampla defesa e do Contraditório.

Alguns juristas equiparam a Justiça Desportiva aos Julgamentos Administrativos realizados pelo Estado, quando do exercício do cidadão no direito de petição ao Estado, ou seja, o Direito de requerer a manifestação estatal, nas decisões e julgamentos.

Ao nosso ver esta equiparação não é correta, pois, na hipótese dos casos administrativos estatais o Poder Judiciário pode se manifestar como Poder controlador a qualquer tempo e enquanto na Justiça Desportiva, o Poder Judiciário só pode se manifestar quando transitar em julgado a decisão desportiva, ou seja, somente quando esgotados os meios de manifestação da justiça desportiva, respeitando –se as regras internacionais e nacionais do esporte.

Logo, podemos concluir é que a Justiça Desportiva é uma exceção Constitucional do Direito de Ação e sua previsão e regulamentação deve obrigatoriamente ser realizada por lei e não pela entidade de organização do esporte.

Atualmente a Justiça Desportiva é regulamentada pela Lei Pelé (Lei no. 9615/98), que até 2016, trazia um caráter estritamente privado de sua formação, porém com o advento da Lei no. 13.322 de 2016, a Justiça Desportiva foi dividida sua competência, em casos de Controle Antidopagem (natureza pública) e casos de Competição e Disciplina (natureza privada).

Pois bem, os artigos vetados, diferentemente do que traz o Texto Constitucional autorizava e determinava que as Entidades de Organização do Esporte é que deveriam regulamentar e criar regras para a Justiça Desportiva de sua modalidade, o que torna a disposição inconstitucional, uma vez que o Parágrafo Primeiro do artigo 217 da CF determina expressamente que a JUSTIÇA DESPORTIVA SERÁ REGULAMENTADA POR LEI EXCLUSIVAMENTE.

É claro que a Lei não pode autorizar que terceiros que mesmo que interessados regulamente assunto dessa magnitude, pois, da forma que está expresso autoriza a própria entidade de organização do esporte que é jurisdicionada a realizar a autotutela sem que qualquer interessado possa se socorrer do Poder Judiciário, como ocorre com os demais casos trazendo um superpoder para estas entidades em detrimento de atletas, clubes, torcedores e sociedade em geral.

A Justiça Desportiva exerce um papel fundamental no controle do esporte e substitui no único caso de exceção constitucional ao denominado Direito de Ação e não podendo obviamente este Poder Constitucional ser transferido para a própria entidade jurisdicionada.

Não se pode dizer que a regulamentação da Justiça Desportiva pelo Estado como é feito atualmente pela Lei no. 9615/98, agride a autonomia desportiva, uma vez que é dever do Estado fomentar o Esporte Nacional.

O Fomento é muito mais do que financiar é propiciar que o esporte aconteça e garantir nas competições que os julgamentos jurisdesportivos ocorram de maneira isenta, por este motivo que a Carta Magna determinou que a regulamentação fosse feita pelo Estado através de Lei e não pelas entidades através de seus atos regulamentares, pois, estes estão sujeitos a revisão judicante dessa Justiça Desportiva.

A Justiça Desportiva julga casos importantes para nossa Sociedade como ofensas preconceituosas, delitos de violência, manipulação de resultado, que podem atingir a integridade das competições, direitos de torcedores, direitos de atletas e principalmente a dignidade da pessoa humana.

Logo, o veto Presidencial foi necessário e deve prosperar para não criarmos um tribunal de penas com superpoder para entidades de Organização do Esporte que poderiam a seu modo alterarem quantas vezes quisessem as regras de julgamentos desportivos o que geraria desigualdades e ainda ofenderia os princípios basilares do Estado Democrático de Direito!!

CITAÇÕES:

1 Paulo Sergio Feuz, advogado, Doutor em Direito pela PUC/SP, Pro-Reitor de Educação Continuada da PUC/SP, Coordenador do Núcleo de Direito Desportivo da PUC/SP, Vice Presidente da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD), Presidente da Comissão de Direito Desportivo do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Auditor do Pleno do STJD do Futebol no período de 2020 a 2024 e Diretor da ENAJD no período de 2020 a 2024.

2 Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; 2. Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional; IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional. § 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. § 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final. § 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

3 Silva, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 21. Ed Malheiros, 2002

4 STF no MS 25.938 DF

5 Melo Filho, Alvaro. Direito Desportivo: Novos Rumos. Belo Horizonte; Del Rey.2004

6 Feuz, Paulo Sergio. O Impacto imediato da Lei Geral do Esporte. Boletim Revista dos Tribunais Online, v. 32, ago/2023


Pesquisa Geral



LogoBlack

Superior Tribunal de Justiça Deportiva de Futebol © Todos os direitos reservados