
Do STJD à FIFA: Internacionalização da pena no Direito Desportivo
23 de julho às 15:01
Por Luís Otávio Veríssimo Teixeira, Presidente do STJD do Futebol.
RESUMO:
A crescente globalização do futebol profissional vem acompanhada de desafios aos modelos tradicionais de jurisdição no âmbito do direito desportivo. A circulação internacional de atletas e dirigentes, a integração da lex sportiva promovida por entidades como a FIFA e a CBF, bem como a consolidação dos mecanismos de cooperação entre entidades nacionais do desporto fomentaram relevante discussão sobre os limites e a efetividade das sanções aplicadas pelos tribunais desportivos nacionais.
Nesse cenário, emerge a questão da internacionalização da pena desportiva, isto é, a possibilidade de que sanções disciplinares impostas por órgãos como o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) superem as fronteiras nacionais.
O presente artigo busca investigar os pressupostos jurídicos, normativos e práticos que envolvem a circulação internacional das penas no futebol, com especial atenção ao papel desempenhado pelo STJD nesse mecanismo, mediante breve análise do sistema sancionatório previsto no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), das competências e limites da jurisdição desportiva nacional e dos mecanismos de articulação com normas internacionais, especialmente as oriundas da FIFA.
Palavras-chave: Justiça Desportiva; STJD; Internacionalização da Pena; FIFA; Direito Desportivo Internacional.
ABSTRACT
The growing globalization of professional football has brought significant challenges to traditional jurisdictional models within sports law. The international mobility of athletes, club officials, and other sports agents, the integration of the lex sportiva promoted by entities such as FIFA and CBF, and the consolidation of cooperation mechanisms among national sports organizations have sparked debate on the limits and effectiveness of sanctions imposed by national sports tribunals. Within this context, the issue of the internationalization of sports sanctions arises — namely, the possibility for disciplinary penalties imposed by bodies such as the Brazilian Superior Sports Court of Football (STJD) to extend beyond national borders.
This article examines the legal, regulatory, and practical foundations that support the international circulation of disciplinary sanctions in football, with special focus on the role played by the STJD in this process. It presents an analysis of the sanctioning system provided for in the Brazilian Code of Sports Justice (CBJD), the scope and limits of national jurisdiction, and the articulation with international norms, especially those established by FIFA.
Keywords: Sports Justice; STJD; Internationalization of Sanctions; FIFA; International Sports Law.
1. O SISTEMA SANCIONATÓRIO NO DIREITO DESPORTIVO BRASILEIRO E O INSTITUTO DA INTERNACIONALIZAÇÃO DA PENA:
O Direito Desportivo brasileiro estrutura seu regime punitivo a partir do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), norma de caráter infralegal que disciplina as infrações e sanções no contexto das competições organizadas por entidades filiadas ao sistema nacional do desporto. Sob a luz do art. 217 da Constituição Federal (CF) , o CBJD integra um subsistema jurídico especializado, que goza de autonomia funcional e decisória, e que possui estrutura própria, ritos específicos e finalidades adequadas às particularidades do ambiente esportivo.
O CBJD prevê sanções que vão desde advertências, multas e suspensões, até perda de pontos, exclusão de campeonatos e banimentos, aplicáveis a atletas, clubes, dirigentes, árbitros e demais agentes desportivos jurisdicionados. A competência para aplicação dessas penalidades é atribuída, em âmbito nacional, ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD) - instância máxima para o futebol brasileiro.
Entretanto, apesar da legitimidade e do alcance interno das sanções eventualmente aplicadas, as decisões do STJD não irradiam necessariamente efeitos automáticos além da jurisdição doméstica. Esse limite prático da jurisdição traz à tona problema central vinculado às penas desportivas: como assegurar a efetividade e a continuidade da punição quando o agente sancionado se transfere para um clube estrangeiro ou passa a atuar em outra jurisdição?
Trata-se de questão não meramente hipotética, mas amplamente presente na prática esportiva forense, vez que recorrentes os episódios de tentativa de esvaziamento da sanção disciplinar nacional por meio de transferências internacionais estratégicas, com clubes estrangeiros contratando atletas punidos no Brasil durante o período de cumprimento da pena.
A legislação nacional ainda não oferece resposta expressa a essa problemática. Ao contrário, o art. 171, §4º do CBJD prevê apenas que a pena imposta no Brasil poderá ser suspensa caso o apenado passe a atuar no exterior, devendo retomar o cômputo a partir do retorno ao cenário desportivo interno, salvo ocorrência de prescrição da pena.
O que se verifica, na prática, é uma lacuna normativa que reflete a visão da legislação desportiva nacional que ainda é muito centrada na lógica da territorialidade, corrente que contrasta com a dinâmica transnacional do futebol contemporâneo.
É nesse ponto que se tornam essenciais os pressupostos jurídicos e normativos da circulação internacional das penas, os quais a despeito de não se encontrarem definidos no CBJD, têm guarida em instrumentos normativos internacionais como o Código Disciplinar da FIFA e o Regulations on the Status and Transfer of Players (RSTP). Ambos os regulamentos estabelecem os critérios, procedimentos e requisitos para que sanções impostas pela justiça desportiva nacional possam ser estendidas e reconhecidas por outras jurisdições, de modo a garantir, por exemplo, a eficácia global das medidas disciplinares aplicadas aos jurisdicionados do STJD.
O pressuposto jurídico da internacionalização da pena é, portanto, a existência de uma decisão válida e fundamentada no âmbito nacional, que necessita produzir efeitos a nível global, sob pena de esvaziamento da sanção. O pressuposto normativo reside na existência dos sobreditos regulamentos internacionais, os quais se aplicam ao contexto brasileiro por força hierárquica. E, por fim, o pressuposto prático passa pela formulação de mecanismos de cooperação eficazes entre o STJD, a CBF e os órgãos internacionais (FIFA e, eventualmente, o Tribunal Arbitral do Esporte – TAS/CAS), capazes de concretizar a referida circulação.
2. ALCANCE E LIMITES DA JURISDIÇÃO DO STJD DO FUTEBOL:
O STJD integra o sistema nacional da Justiça Desportiva brasileira como órgão de cúpula, com competência para julgar, em grau recursal, as decisões das Comissões Disciplinares e dos Tribunais de Justiça Desportiva estaduais, além de atuar originariamente em casos previstos na legislação.
Nos termos do art. 1º do seu Regimento Interno e do art. 1º do CBJD, a jurisdição do STJD se limita ao território nacional e às entidades que compõem o sistema federativo do futebol brasileiro. Essa delimitação reflete o princípio da especialização funcional da Justiça Desportiva, concebida constitucionalmente como uma instância prévia e autônoma, voltada à pacificação dos litígios decorrentes da prática esportiva, com ênfase na celeridade e na tecnicidade dos julgamentos.
A jurisdição do STJD, portanto, é exercida no âmbito das relações desportivas regidas pelo ordenamento jurídico nacional, sendo sua eficácia territorialmente circunscrita às entidades vinculadas à CBF. Logo, em regra, suas decisões não produzem efeitos automáticos fora do Brasil nem vinculam as entidades desportivas estrangeiras ou demais associações membro vinculadas à FIFA.
Contudo, ainda que a jurisdição material do Tribunal não ultrapasse as fronteiras nacionais, essa limitação formal da jurisdição não impede que o STJD exerça papel ativo na articulação de medidas com alcance internacional, vez que suas decisões podem desencadear efeitos globais quando submetidas aos mecanismos previstos nos regulamentos internacionais, como ocorre nos casos de extensão de sanções pelo Comitê Disciplinar da FIFA.
Nesse sentido, é preciso distinguir a jurisdição propriamente dita, enquanto poder de decidir dentro de um determinado sistema jurídico, da capacidade e do dever de influenciar efeitos transnacionais por meio de instrumentos de cooperação institucional. A atuação do STJD se esgota nos limites da jurisdição nacional, mas o dever de proteção da integridade esportiva pode irradiar efeitos para além dela, desde que em conformidade com os mecanismos regulatórios previstos pela lex sportiva.
3. A PENA DESPORTIVA EM PERSPECTIVA INTERNACIONAL:
Em um ambiente marcado pela circulação constante de atletas, técnicos e dirigentes entre clubes de diferentes países, a eficácia das penas disciplinares no futebol não pode mais ser analisada exclusivamente sob a ótica da jurisdição nacional.
O respeito à integridade desportiva depende, cada vez mais, de mecanismos normativos capazes de assegurar que sanções impostas pela Justiça Desportiva nacional tenham continuidade e reconhecimento em outras jurisdições, sob pena de tornarem as penalidades inócuas.
A lógica é simples, a transferência internacional não pode servir de subterfúgio para neutralizar a punição decorrente de condutas que atentam contra as regras e noções de ética que regem o futebol.
É nesse contexto que se insere o mecanismo previsto pelo art. 70 do Código Disciplinar da FIFA, que prevê procedimento específico para que sanções disciplinares impostas no âmbito nacional possam ser estendidas para que produzam efeitos transnacionais.
O referido dispositivo impõe um conjunto de condições objetivas e formais para verificação da legitimidade da ampliação da sanção submetida à apreciação. Alguns desses requisitos incluem a gravidade da infração, a citação e comunicação válida da parte sancionada e, sobretudo, a existência de manifestação expressa que solicita a extensão global da pena.
Não se trata de reavaliar o mérito da decisão. O Comitê Disciplinar da FIFA, órgão ao qual é submetido esse tipo de requerimento, não revisa os fatos ou fundamentos da punição. Sua competência limita-se a confirmar se a sanção pode circular globalmente de modo legítimo, sem qualquer ofensa à ordem pública ou aos padrões éticos adotados pela entidade.
Portanto, cabe à (con)federação nacional interessada apresentar o requerimento à FIFA, instruindo-o com toda a documentação comprobatória da legalidade, validade e regularidade do procedimento sancionador. Disso decorre a importância do papel do STJD na rigorosa observância aos ritos processuais e às garantias do devido processo legal, tanto em suas próprias decisões quanto naquelas oriundas dos Tribunais de Justiça Desportiva estaduais que alcancem à instância superior, de modo a garantir a solidez procedimental construída na instância nacional.
A extensão, uma vez deferida, produz efeitos automáticos em todas as entidades filiadas à FIFA, com o mesmo peso de uma sanção imposta por qualquer uma delas. Assim, a pena deixa de estar restrita ao território da federação de origem e passa a ser reconhecida globalmente, garantindo a efetividade da punição e impedindo a evasão por meio de novas inscrições internacionais.
Outro dispositivo fundamental nesse regime de circulação internacional da pena é o art. 12.2 do RSTP, segundo o qual as sanções disciplinares de suspensão, uma vez deferida a extensão pela FIFA e superiores a quatro partidas ou três meses, devem ser respeitadas por toda e qualquer nova associação a que venha a se vincular o apenado.
Assim, um jurisdicionado suspenso em sua associação de origem permanece inelegível para atuar até o cumprimento definitivo da pena, ainda que se transfira a outra federação nacional. Esse artigo funciona como complemento operacional ao art. 70 do Código Disciplinar e confere efetividade ao sistema.
O caso envolvendo o jogador Alef Manga ilustra perfeitamente a aplicação prática e eficaz desses dispositivos. Em 2023, no bojo da Operação Penalidade Máxima, deflagrada pelo Ministério Público de Goiás para apurar esquema de manipulação de resultados em troca de vantagens financeiras, o atleta confessou participação em um dos episódios investigados. Julgado pelo STJD, foi suspenso por 360 dias e multado em R$ 50 mil (cinquenta mil reais), em decisão ratificada pelo Pleno. À época da sanção, o atleta atuava pelo clube Pafos, do Chipre, emprestado pelo Coritiba logo após ter notícia da formalização da sua denúncia no âmbito desportivo.
Inicialmente, a sanção tinha efeitos apenas em território nacional, o que permitiu ao jogador seguir atuando no futebol cipriota mesmo após a decisão do STJD. No entanto, após requerimento da CBF com fundamento no art. 70 do Código Disciplinar, a FIFA ampliou a suspensão para todas as federações filiadas, impedindo o jogador de continuar atuando no exterior. O Comitê Disciplinar da FIFA notificou o atleta, tornando a sanção válida mundialmente a partir de 31 de julho de 2023, o que levou o clube estrangeiro a acionar cláusula contratual que previa a rescisão automática em caso de punição disciplinar.
Casos semelhantes, como os de Eduardo Bauermann, Gabriel Tota, Paulo Miranda e outros atletas envolvidos no esquema de apostas, seguiram a mesma lógica: após julgamento e condenação pelo STJD, os efeitos das penalidades foram estendidos a nível global, em iniciativa que consolidou um case de sucesso no combate à manipulação de resultados em escala transnacional.
A jurisprudência formada demonstra que, embora o CBJD não contenha previsão expressa sobre a eficácia internacional das penas, o sistema normativo internacional permite a harmonização das sanções e impede que atletas punidos se refugiem em outras jurisdições para driblar as consequências de seus atos.
Esse regime de cooperação demonstra maturidade institucional do STJD e reforça o papel do Tribunal como agente de proteção da integridade esportiva também no plano internacional, ainda que sua jurisdição seja formalmente limitada ao território nacional.
4. CONCLUSÃO:
A internacionalização da pena no âmbito do direito desportivo configura um dos grandes desafios da governança esportiva no futebol contemporâneo. A crescente mobilidade transnacional de atletas, dirigentes e demais agentes desportivos gerou um cenário no qual sanções aplicadas por Tribunais de Justiça Desportiva nacionais correm o risco de se tornarem ineficazes, caso não haja mecanismos de reconhecimento e continuidade em outras jurisdições.
Diante desse contexto, torna-se indispensável que a Justiça Desportiva nacional esteja apta a articular-se com normas e instituições situadas para além de suas fronteiras formais de competência, a fim de garantir o cumprimento de suas decisões e a proteção da integridade das competições. O dever de zelar pelo respeito às penas impostas não se limita ao plano doméstico, mas alcança a esfera internacional por meio da colaboração com os organismos que compõem o sistema global da lex sportiva.
Nesse cenário, o STJD do Futebol, embora possua jurisdição formalmente restrita ao território nacional, tem desempenhado papel central na consolidação de um sistema desportivo cooperativo e alinhado aos parâmetros internacionais. A utilização dos instrumentos previstos no art. 70 do Código Disciplinar da FIFA e no art. 12.2 do RSTP tem permitido que decisões da Justiça Desportiva brasileira sejam reconhecidas e executadas em âmbito mundial, impedindo que condutas graves fiquem impunes em razão da fragmentação jurisdicional.
Conclui-se, portanto, que a ausência de previsão expressa no CBJD quanto à eficácia internacional das sanções não representa obstáculo para a atuação global da Justiça Desportiva brasileira. Desde que seus órgãos atuem com responsabilidade institucional, rigor técnico e respeito às garantias processuais.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD. Resolução CNE nº 29, de 10 de dezembro de 2009. Disponível em: https://www.stjd.org.br/. Acesso em: 15 de julho de 2025.
BRASIL. Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD). Aprovado em Sessão Plenária de 04 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://www.stjd.org.br/. Acesso em: 15 de julho de 2025.
FIFA. FIFA Disciplinary Code. 2025 edition. Zurich: Fédération Internationale de Football Association, 2025. Disponível em: https://inside.fifa.com/legal/documents. Acesso em 15 de julho de 2025.
FIFA. Regulations on the Status and Transfer of Players – RSTP. 2023 edition. Zurich: Fédération Internationale de Football Association, 2023. Disponível em: https://inside.fifa.com/legal/documents. Acesso em: 15 de julho de 2025.
GLOBO ESPORTE. Manipulação: FIFA torna mundial a suspensão de Alef Manga, ex-Coritiba. 31 out. 2023. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2023/10/31/manipulacao-fifa-torna-mundial-a-suspensao-de-alef-manga-ex-coritiba.ghtml. Acesso em: 15 de julho de 2025.